Vaga Carne
Texto e direção: Grace Passô
Caixa Cultural, SP
Há na montagem uma curva de aprendizado pautada pela suposição de que o expectador terá paciência para cumprir a parábola. Num início codificado que exige meditação, espera, reflexão contínua e olhos atentos, o público vê-se no lugar filosófico da personagem que ainda virá: nós do público vagamos por lugares inadequados, ásperos e interrogativamente “siderais”.Firmando matrimônio com este procedimento, a atriz-narradora-possuída-personagem acessa hiperlinks que se cruzam sem que haja construção empírica, ou seja, aqui as dúvidas estão sempre recomeçando a partir de um terreno árido.Há na intérprete um pulmão que sempre atualiza sua capacidade, esta, que está sempre em busca de dizer algo da plateia, vê-se apenas o contorno. E este vislumbre que se pensa capaz de produzir algum contexto ou fala, fatalmente oscila entre produzir um material ora carismático e outrora repulsivo.Embora o ato teatral gerado apresente enorme reticência temática, causada por uma pretensão de respeito ao tempo presente, não há nesta escolha um respiro que produza algum avanço em nossa condição pós-moderna, pelo contrário, só cria-se algo capaz de os paradoxos do momento. Antes pudéssemos trocar o hiperlink pela hiper-tentativa-de-síntese.Em alguns esparsos momentos de definição da realidade, o texto opta por personalizar os hábitos humanos, e disso extrair, segundo listas, conforme investigação, uma ponderada definição de si e do outro. Aqui se pode criar alguma simpatia com a retórica. Estes momentos que, ou mal cálculos ou habitam a primeira metade do espetáculo, estão estrategicamente posicionados após o começo hermético e antes do final esclarecedor.Nota-se uma atriz no auge de sua capacidade, pois, caso ultrapasse a complexidade da presente interpretação, estaremos diante não de uma artista vocacionada, mas de uma artista incomparável, unânime, radical e única.Como se houvesse uma rede social diretamente ligada ao procedimento da fala até desfibrilar o corpo e o espaço vemos a realidade, em forma de palavras, rodopiarem diante de nossos olhos. Sim, as palavras se fazem visíveis quando tocadas pela voz de Grace Passô. Seria um múltiplo motim caso víssemos ideologias justapostas disputando o corpo, que, neste caso, representa o único lugar de fala possível, ou seja, a boca dizendo tudo aquilo que o cérebro tenta, por adestramento, esquecer, condicionar ou reduzir.
foto Kelly Knevels