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IC11 - 2017


Acompanhe aqui as resenhas de Marcio Tito sobre o festival.

__Uma fala sobre o festival. Impressões da experiência.

Um festival, em termos lúdicos, permite que o mundo se contamine da natureza da arte. Em temos práticos, autoriza o mundo à libertar-se do pragmatismo e embarcar em uma sequência de experiências sensíveis. Os jogos são capazes de suspender nossa identidade por alguns instantes. Transidos pela dinâmica de um jogo podemos revelar dimensões insuspeitadas, seja de nossas personalidades, de nossa espécie, da cultura ou do tempo onde estivermos. O IC-11 deixou bastante clara a força presente nestas duas instâncias. Jogamos peças para experienciar os procedimentos, assistimos jogos para vivermos a catarse da mecânica de um game, comemos arte e bebemos para performarmos a festa. Os shows acompanharam a atitude da feira, nada enlatado para nós! Música artesanal e artesanato experimental fizeram tocar as notas da canção-festival. Ativou-se biblioteca, restaurante, boate, museu. O encontro de artes entre artes também reuniu os espaços. Reduziu as distâncias estabelecidas, reconfigurou o que disseram determinado. Jogar as estruturas é readequar os meios, é dinamizar as relações de troca entre os grupos. Falar de cultura jovem pode não recriar satisfatoriamente a experiência, talvez devêssemos apontar uma cultura renovada. Os meios de produção dos objetos da feira protagonizaram ao lado do próprio objeto. Processo e resultado surgem colados neste tempo. A comunicação do festival produziu informação e também colocou-se como outra possível narrativa para as mídias e o dinheiro. Os resultados são parte da linha de partida, disse o IC. Quem está pra jogo, além de aceitar parte do desconhecido, pode intuir também que os jogos são imprevisíveis. Perder ou ganhar faz parte da história que busca revisar as tradições. Portanto é sem medo que se propõe o novo, é com festa que se apresenta as boas novas ideias ao mundo. Um festival de vanguarda para evidenciar as possibilidades e constranger os pessimistas. Mais uma vez a Bahia bafeja Fôlego para o Brasil!

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__Biblioteca de dança

De Neto Machado e Jorge Alencar

Goethe-Institut Salvador - BA

Performer Luís Thomas

A arca do sabor é um projeto mundial, salvo engano levado pelos italianos, que visa preservar sabores para o futuro. Quer dizer, uma bala de morango, o iogurte de morango e um morango in natura são todos variações do mesmo morango, portanto, como definir o sabor de um morango? Mesmo no morango in natura haveria diferença entre o morango vendido pelo grupo Pão de açúcar e um morango colhido por um frade medieval. É certo que sim. Portanto, o tempo corrompe a memória. A memória é corrompida pelos contextos e, ao que parece, estamos todos rendidos ao impulso que extingue tudo e todos. A nossa vocação foi sempre resistir, criar mecanismos, dissimular os finais. Projeto similar, dizem, é levado também pelos estadunidenses que conservam em galpões submersos musicas dos Beatles, filmes de Fellini e livros de James Joyce. Dito isso... O teatro sempre calçou sua poética no esquecimento. O que seria então uma biblioteca voltada à conservação do efêmero? Chico Anysio disse que morremos muitas vezes, uma delas quando o nosso corpo deixa de armazenar e gastar energia, e a outra, quando alguém do futuro pronuncia o nome daquele que viveu, pela última vez, fechando um ciclo, calando uma história. A biblioteca de dança projeta instantes que passaram, visto que são história àquele que narra. E a dança, linguagem quântica do pensamento, teatro rítmico para além das palavras, recebe aqui um lugar de honra na memória. Passageira ou não, efêmera ou não, a dança merece delirar ser eterna. E os artistas que se propõem ao armazenamento desse ar, desse olhar, dessa ideia que só poderá caber dentro do outro compõem uma estranha vanguarda de artistas que trabalham segundo aporias estéticas e ideais de cientistas lúdicos. A biblioteca de dança é um momento da arte brasileira.

Performer Jorge Lacerda

Os livros promovem viagens. Os corpos propõem viagens. E na biblioteca de dança, as viagens se misturam, viajam uma mesma dimensão, e uma reiterada qualidade une corpo, memória, lugar e encontro. Basta que o performer nos olhe e ofereça uma história. Basta que haja um grupo ao redor da mesa. Esse trânsito estimula outras pesquisas para o ambiente das bibliotecas, outras instâncias podem promover novas leituras. Os livros são também seus autores, os livros são também a realização das imagens que propõem. Os livros aqui dançam, são visíveis para além de sua afasia milenar. A biblioteca de dança ocorre segundo a expectativa do encontro e isto, hoje, me parece revolucionário. O magnetismo dos encontros, na banalidade dos dias, anda frágil mas ainda resiste. A biblioteca de dança é um motivo, um treino, uma possibilidade para resistirmos nesta antiga tradição. Encontrar é preciso.

Performer Juan Wills

Utilizando outra qualidade narrativa, com maior repertório cênico, Juan transita por dentro da proposta sem nega-la. Agente de um drama pessoal, aonde as histórias lhe pertencem conforme seus olhos alcançam mimese, Juan ainda vale-se de uma técnica tradicional, isto cria e recria a biblioteca de dança. Seus recursos nos fazem repensar o modelo, e partindo da revisão podemos imaginar se, ao interesse do público, o projeto deve manter sua forma líquida ou estabilizar seu corpo em um estilo preciso. Cada liberdade liberta algo. Cada fricção faz algo surgir. A diferença é sempre uma forma de rever a tradição, ou, com generosidade, inventar um novo lugar.

Performer Mathias Santiago

A vida corre mais rápido que a prensa. Ideias são mais dinâmicas que editoras, tinta e papel. Só o corpo é capaz de chegar perto da velocidade do tempo presente. Portanto, quando a biblioteca de dança se propõe ao diálogo com o hiper-contemporâneo, através do corpo surge uma nova função para a memória. Tal qual um jornal, mas produzindo presença para uma poética renovada e de outra qualidade, a fala deste performer viaja pela memória até alcançar o presente. Investigando um singelo plano para cooptar os saberes de Marc Zuckemberg para os ideais da dança, vivenciamos algumas das vocações da arte: a ruptura das impossibilidades, a revisão da ordem estabelecida e o sonho enquanto narrativa para a vida.

Performer Rita Aquino

Aparatada, munida de repertório visual, sensorial, verbal e íntimo, a performer mais uma vez torce a lógica da mesa. Cria uma dinâmica não cênica e nem informativa, qualquer coisa entre a experiência e o happening poderia registrar melhor a sensação. Sabores e sons, opiniões e atmosferas rompem o padrão das mesas e estabelecem uma outra vivência, talvez menos livresca que seus colegas, ainda assim capaz de conter uma história e suas particularidades, Rita organiza uma delicada estrutura ao redor da história, propõe um teatro aonde espectadores e público estão sentados, ou, uma performance fixa no espaço. Vale a pena rever caleidoscópicamente a biblioteca e encontrar neste fluxo os padrões, as atmosferas comuns e as ainda não investigadas, porém já apontadas, possibilidades.

crédito fotográfico não encontrado

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__O Bicho

Criação, performance: Wagner Schwartz

Luz: Diego Gonçalves

Goethe-Institut Salvador - BA

Oferecer uma superfície aos que não sabem tocar. Disponibilizar um espaço aos que, há muito, estão presos na virtualidade. Testar o bom senso. Estabelecer um acordo desregrado. O Bicho oferece tais possibilidades. E ao trair o bicho, ou seja, ao feri-lo como punição por sua demasiada mansidão, temos revelado o descompasso entre poder e responsabilidade. Um micro-universo à serviço de espelhar a vida. Uma metáfora sem fábula, uma metáfora literal é o que surge, quando o corpo concede tantas permissões. Aquele que tem poder parece anunciar sempre algum abuso, alguma vil irresponsabilidade ou, na melhor das hipóteses, apenas o cruel e velho descaso. Embora já tenha acompanhado um outro trabalho com o mesmo título, com o mesmo release, a mesma dinâmica e o mesmo performer (bailarino) em cena, penso ter presenciado uma outra e nova expressão. Embora tudo soasse como um flashback do passado, as imagens carregavam outra linguagem, um outro aparelho de sentidos e uma renovada ambição. Se antes o corpo parecia torturar a crueldade de quem o manipulava em vão, hoje o torturado foi o corpo proponente. Talvez seja efeito do todo, uma mostra da força do contexto ou a passagem do tempo, mas, ainda que o corpo sofra ou faça sofrer, é certo o que lhes digo: O Bicho está vivo e deste laboratório ainda surgirão inúmeros discursos, insuspeitadas contradições e acasos reveladores.

foto Maíra Spanghero

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__Outros jogos possíveis

Games com foco em representatividade social. Um game no serrado, na caatinga, protagonistxs em cena. Jogar impele o interlocutor. Cria um espaço vazio entre o ato e o que se move. Rompe a virtualidade da observação e coloca em situação aquele que manipula e aquilo que é manipulado. E, ao perder o ponto de referência, perde-se sempre a identidade, assim o jogo joga o jogador e o jogador entrega-se ao abrir e fechar de possibilidades. Incluir uma dinâmica política, pautada por responsabilidade social e representatividade, ainda sem profanar o procedimento do jogo, politizando-o em demasia, é um acerto ideológico. Sem panfleto ou palanque, sem certos e errados, de maneira lúdica, a mensagem chega até os sentidos de quem acessou o game. O teatro é um jogo. As artes plásticas nos fazem jogar, a música e a dança jogam quando combinadas. Antropofagia é isto. E este delicado ato de jogar com as diferenças, conforme a possibilidade lhe couber, rapidamente evocará Dionísios. Basta que a arte devore os elementos do mundo e, após tudo misturado, veremos configurações artísticas em lugares (ainda) insuspeitados.

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__O Museu Invisível

Ben Evans e Luís Miguel Félix (EUA)

Palacete das Artes - Salvador - BA

O museu de coisas invisíveis torna o espectador uma futura obra. Assim, existindo a latência de sermos obra algum dia, ainda continuando nossa trajetória como público através da galeria, também podemos imaginar o que seria produzir a magia contrária e, através de procedimentos lúdicos, emprestar o nosso rosto de gente aos futuros objetos da mostra que está por vir. Ainda que o mundo inteiro possa vir à ser imagem algum dia, as expressões pictóricas ou não, nas mãos destes artistas, jamais obrigadas à experienciar a tradição de imobilidade dos objetos. Tudo se faz trânsito quando temos rompido o lugar dos interlocutores. Revistas e situadas em outro e renovado encontro de linguagens, nós, as recentes obras, abrimos lugar para uma radiante fusão de tempos, memórias e sentidos. Aquilo que não se pode ver, conforme ocupa um lugar no espaço, produz também infinitas possibilidades para ser e estar. Surge como traço o desejo em criar cartografias sensíveis através de encontros mediados, e, tratamos, coletivamente, de ideias atemporais que possam preservar sensações que ultrapassem a memória e alcancem as emoções de seres (ainda) desconhecidos. Por vezes, a melancolia ataca as estratégias do grupo mas, ainda isso, dentro da estrutura do jogo, parece colaborar com a força do encontro proposto. Lançamos mensagens em garrafas, imaginamos que o mar é o tempo e que o acaso está presente no corpo dos performers. Os objetos invisíveis dispostos pela galeria da memória são figuras para uma curadoria do afeto, e, contrapondo os ideias históricos, culturais e estéticos que em geral produzem o grosso das coleções dos museus, aqui, a escolha dá-se pelo traço humano das coisas. Laços de amor e sangue circundam as obras. Tudo se faz carne através do sonho dos artistas!

foto Leonardo França

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__A terça mais estranha do mundo - Mamãe eu sou um monstrx!

Direção - Malayka SN (BA)

Âncora do Marujo - Salvador - BA

Hakim Bey. O cyber-teórico ativista não há de conhecer este espaço em Salvador, mas é certo que sua teoria abençoa a existência desta imprescindível TAZ. Uma TAZ é uma zona autônoma temporária (temporary autonomy zone). Uma zona autônoma é uma organização civil espontânea que, sem um plano de ação, acontece conectando as relações segundo a subjetividade de um grupo que reuniu-se por afinidade. É uma zona sem governo que, por excelência, não é mediada segundo valores externos. É uma instância filha de seu tácito regimento interno, de seus valores próprios e de suas deliberadas necessidades. Este conceito surge, em parte, para explicar o fenômeno das comunidades virtuais, mas rapidamente a sociologia conectou suas leituras também ao universo tátil. Encontrou assim diversas zonas autônomas implacáveis, inúmeros grupos resistentes. O bar Âncora do Marujo estabelece um cabaré autônomo e temporário. Muito embora acumule aproximadamente duas décadas de tradição, posso intuir que o aspecto temporário está no encontro dos tipos. Os encontros ativam as zonas autônomas. Os tipos se atraem e estabelecem acordos específicos. A sensação é de que Andy Warhol, a qualquer momento, sairá do banheiro. Que David Bowie, a qualquer momento, esbarrará contigo, quando você buscar passagem entre o aquário, a cadeira trigrada e uma porção de fritas personalizadas. O "Cabaret Voltaire" encontrou aqui a sua atualização pop, porque tudo torna-se debate no palco, mas, antes de qualquer elucubração, tudo, por dever com a curadoria, torna-se imagem, figura, expressão visual. Como disse Warhol - ser pop é gostar das coisas. E o Âncora do Marujo gosta-se de quadros com temática marinha, gosta-se de capas com temática geométrica para revestir encostos de cadeiras e músicas como O Pato, Ilariê e Vaca Profana. Uma zona autônoma é uma contestação aos modelos externos, aos governos e às constituições. No caso de um show de Drags a cadência geral aponta para o glamour, para uma espetacularização daquelas figuras segundo o senso comum. Portanto, e para tanto, esta zona autônoma coloca em xeque estes valores hegemônicos. Percebe a estrutura que produz o glamour imposto e que busca tornar aqueles corpos uma imagem sem discurso. Em legítima defesa o Âncora do Marujo cria uma estética capaz de antropofagizar seu próprio contexto. Exerce ruptura. Exibe um particular e sofisticado repertório de dinâmicas que posicionam performers e público. Os figurinos e as projeções são específicas e autorais, são uma parte narrativa fundamental, servem para cada numero, não constituem um acervo comum, são parte daquele momento exposto e, impregnados de discurso, são como os irrepetíveis e intransferíveis figurinos de um balé. Impressiona o rigor intelectual das criações, pois, ainda que o satírico e o deboche estabeleçam claras balizas, o discurso político e a presença política não se permitem atravessar por isto. Mantém-se em rara integridade discursiva, visual, retórica, dialética e inclusiva. Uma zona livre para o pensamento! Uma postura política radical que não se rende ao banal da evocação de partidos. A estética está liberta da catequização da comunicação de massa e tudo colabora para um ambiente amplo de significados e narrativas, eis aqui um respiro para aqueles que sentem-se abafados pela confusão que hoje muitos fazem entre normalidade e mansidão.

foto Patrícia Almeida

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Marcio Tito viajou a convite do festival.

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