Dança Doente
De Marcelo Evelin/Demolition Incorporada
Sesc Santana, São Paulo
O Avesso da Doença
Um vírus é acionado e contamina o todo. Pequenos pulsos e movimentos involuntários gradativamente contagiam o coletivo. Como sabemos pela educação somática, a propriocepção é o princípio motor básico para que tenhamos noção de onde estamos. Eu só estou parada porque não estou me movendo, ou só estou movendo esta mão porque todas as outras partes estão sendo inibidas. Por mais óbvio que possa parecer, trata-se de uma tecnologia sensório-motora que faz com que o movimento seja suficiente às nossas escolhas. O que Dança Doente propõe não é este movimento delineado, mas o que escapa, gagueja, soluça, se opõe. Esses movimentos débeis, a princípio vistos de maneira pejorativa, me fazem lembrar da origem da palavra boçal.
Comumente compreendido como aquele que é desprovido de inteligência, que é besta, estúpido e tapado, o termo boçal é referente ao escravo negro que ainda não falava o português. Mas não só qualquer escravo, e sim o recém-chegado da África especificamente no período logo após a abolição da escravatura. Para distinguirem os negros que ainda estavam em processo de liberdade dos que haviam recém-chegado do navio negreiro e sequer seriam escravizados, seria necessário observar a pronúncia do português – quem falasse bem eram os negros já lá instaurados, e os que falassem mal, os livres. O que ocorreu foi que, percebendo esse critério de distinção, todos os negros passaram a falar mal português, para serem logo tidos como livres. Isso mostra que o quê compreendemos como “boçal”; os idiotas, toscos e ignorantes, são de fato os bastante espertos por logo sacarem a regra do jogo e a subverterem, a ponto de, inclusive, mudar signos que estão no nosso léxico até hoje, tamanha interferência no nosso sistema linguístico. Do mesmo modo, quem vê Dança Doente pode julgar os corpos ali como debilitados e desprovidos de força, mas estão plenos, atentos, inteiros.
Como diz a autista Amanda Gabbs, americana que conta e escreve sobre sua condição, o fato de os autistas não se comunicarem normativamente não quer dizer que não tenham uma linguagem ou um propósito nas suas relações, apenas que têm um modo próprio de interação com o ambiente. No início, Dança Doente parece fazer parte deste campo, de gestos não codificados e sem função, mas de funcionamento próprio, cujos sintomas são oposições de vetores mínimos e breves descontinuidades. Nesse sentido, se destoam quando os performers são seduzidos pelo movimento contínuo, por enaltecer uma dança consequente e coerente demais, desviando do que parece ser a célula primordial desta dança, a resistência aos códigos por vetores que rasgam espasmodicamente cada tecido.
Desses corpos, a princípio apenas duas figuras parecem imunes ao comportamento instaurado, até que uma delas também é “sugada”, contaminada pelo mesmo estado comum. Resta uma única figura, um voyeur, não casualmente de óculos, que permanece até o fim, ora dentro, ora fora, mas sempre o observador, quase um maestro de tudo que acontece ali. Este que a tudo vê, ao mesmo tempo testemunha e espectador, traz em sua onipresença tanto concessão, ao arranjar os elementos que entram (figurino e faixas de linóleo); quanto julgamento, pelo fato de ser o único imaculado do todo, sugerindo certa onipotência, magnanimidade. Logo antes do fim, acontece uma cena de sexo entre dois homens; uma cena ao mesmo tempo bruta e confusa ao som de um homem falando je t’aime repetidamente. E esse, que a tudo vê, é o único que divide cena com o ápice do trabalho, misturando as duas leituras deste observador; o que consente e o que julga. Ao mesmo tempo que ele faz gestos alvos com as mãos, parecendo amparar ou consentir com os dois corpos que se pegam, continua sendo o que se destaca do todo e tem certa exclusividade. Não por acaso esse segundo aspecto me remete aos tempos atuais, onde os que olham de cima, têm o poder não só de julgar mas de determinar judicialmente o que é doença – como no caso atual no qual o juiz Waldemar Cláudio de Carvalho protagonizou mais um empurrão para a legislação brasileira seguir retrocedendo na hipótese de considerar a reversão sexual, conhecida como a cura gay. Foi nesse jogo de alteridades que Dança Doente me lançou para as costas da doença, para aquele que a designa, e só então para aquele que é considerado debilitado, desprovido de intelecto e dignidade. Antes do belo, do código, do saber, foi uma oportunidade de ver nesse estado de corpo uma potência de alteridade, perspicácia e sagacidade. De virar a doença do lado do avesso, olhar além de sua potência de morte e esvaziamento, para escavar suas linhas de fuga.
foto Mauricio Pokemon