Kiev
De Roberto Alvim, Cia. Club Noir
Sesc Ipiranga, São Paulo
No teatro as metáforas dramatúrgicas precisam criar diálogo com as imagens para que possam acontecer e comunicar sem ruídos ou desvios sua razão e intenção de ser. Indo conta este estabelecido teremos produzido sempre um curto-circuito entre a ideia, a narrativa motriz e a própria experiência estética. Um enredo que buscou selecionar dramaturgicamente as duas dimensões que compõe uma metáfora (objeto e paralelo), e que também planejou manter uma clara trajetória argumentativa, em geral necessitará que as imagens propostas, a partir da dramaturgia, não elaborem outras metáforas. E se o carro sair em frente à boiada fatalmente teremos criada uma desnecessária concorrência entre os atributos da cena e as propostas da dramaturgia. O combate das metáforas pode nublar a obra e relegar a poética ao atabalhoado de procedimentos postos e mal condicionados. Não se deve metaforizar a metáfora, caso o desejo não seja o de confundir o seu maior significado.Em Kiev a disputa interna permeia todo o espetáculo. A farsa que está posta na figura defendida por Otávio Martins concorre com a tragédia-over sofrida pela personagem de Juliana Galdino, e nada disso parece conectar-se ao resoluto drama metafórico presente na dramaturgia. Nem mesmo as imagens acontecem no mesmo ritmo em que as dobraduras do enredo se resolvem. E parece inconcluso o prospecto visual perante a evolução das situações.Ainda assim, imaginando que este descompasso possa significar alguma tese da direção ou procedimento da dramaturgia, então buscando um ponto coeso para agarrar-se ao espetáculo, é possível que o espectador termine por perder-se dentro da pletora de caminhos que a obra parece descontroladamente disparar. Os elementos alegóricos não se sustentam perante o esquema expressionista das interpretações e o texto pouco parece conectar-se ao desenho do todo, e tudo o que seria alegoria transfigura-se em verdade corrida ou possibilidade de verdade acontecida. A direção torna sonho o que é vida e pretende convencer-nos de que a vida é sonho.Parece filosoficamente agradável a ideia de vermos contada uma passagem histórica a partir de um panorama das relações da vida privada, e o progresso do tempo contra o que parecia estabelecido também chega a animar o nosso desejo de espectador, mas a falta de acordos em todas as instâncias do trabalho visual e sonoro, infelizmente, chega ao ponto de inviabilizar até mesmo a leitura desta ideia enquanto possibilidade cênica. E por mais que haja rigor em cada uma das construções, não se percebe ter havido força para a elaboração de um objeto preciso, sobram arestas. O elenco parece ter resolvido muito e discutido pouco, são interpretações tecnicamente precisas e espacialmente dispersas, "desideologizadas" esteticamente e nada engajadas em habitar o corpo do espetáculo, configuram uma estranha dimensão descolada da obra.Juliana Galdino, que já confirmou sua excelência em Comunicação a uma Academia, encontra dificuldade para criar uma parábola em sua interpretação. Suas transformações estão marcadas apenas na evolução da maquiagem e do figurino, coisa que vem para decepcionar os que foram atraídos pela já reconhecida capacidade de mutação da atriz. O efeito chapado que aponto na interpretação está presente também na iluminação que apresenta uma pouco inventiva orquestração que, não sem antes produzir instantes plásticos, termina por organizar a peça em frações iluminadas ao longo do palco.Comento a luz para fazer caber a ideia inicial. Dito isso, basta notarmos que a luz não proporcionou lugar para a identidade do espetáculo e muito menos criou uma atmosfera compartilhada entre texto e direção, então vimos um equipamento de luz posto em função de iluminar as marcas dos atores, e não uma luminosidade capaz de situar a ordem da ação ou ambientar, mesmo que em tom subjetivo ou poético, as nuances da cena e do todo. Tudo o que se aponta como dramático torna-se épico, seja pela carga interpretativa ou pela distância que os elementos oferecem entre si.Todos estes aspectos emprestam uma completa falta de identidade ao trabalho. Eis aqui um paradoxo, pois, sendo muito bem percebida a mão da direção e estando muito claros os elementos que compõe o sistema cênico da Cia Club Noir, natural seria que ficassem na boca as particulares notas que outrora experimentamos em trabalhos como Comunicação a uma Academia, Hieronymus nas Masmorras e até mesmo no já menos entusiasmante, porém sedutor, Leite Derramado.O excesso de recursos auto-referenciais remete o trabalho à um misto de outras montagens que ainda vagam na memória dos espectadores e, mesmo a interpretação de Galdino parece remontar sua Madame em O Balcão de Jean Genet, inclusive fazendo-nos perder entendimento conforme utiliza o texto como apoio para evocar um tipo de marca registrada da atriz.Marat Descartes parece ter sido o único à perceber que o texto de Sergio, encontrado com a direção de Alvim, prescindia de uma segunda leitura, com isto, quero dizer que todo o elenco pendeu em uma direção ou em outra. Marat, imbuído de forte concentração e bem direcionada voz, sistematizando precisa nuance das intenções, encontrou uma eficaz interpretação para dar conta da estética do trabalho, unificou as qualidades de cada uma das partes fundamentais e achou assim uma delicada forma de ler a obra.É a chave do trabalho. Partindo dele somos capazes de rever o peso da tragédia, a dureza daquele tempo e o processo de reposição do horror, de atualização da vida e de seus espaços. Marat e sua forma traduzem os mais poderosos vértices do texto e as melhores intenções da direção. É a corda que liga o que conduz e aquilo que é conduzido.
foto Edson Kumasaka