FIBA 2020 I "Orlando"
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Orlando
de Julies Beauvais
Suiça/França
Plaza República Federativa del Brasil, Buenos Aires
27.01.2020
Algumas histórias são criadas com o intuito de ir além delas mesmas. Às vezes se dedicam a pessoas, acontecimentos ou olham aos costumes e valores afim de elaborarem comentários sobre o indivíduo e a sociedade. Outras vezes, buscam investigar estilos literários em contraposições linguísticas ou pela tentativa de instituir novas possibilidades à escrita. Quase nunca, porém, ficam de fora experiências próprias, seja por terem sido vividas, seja por mera observação silenciosa. Foi em 1928 que Virgínia Woolf apresentou ao mundo uma de suas obras mais potentes. Orlando talvez se situe também entre as mais populares, graças às adaptações aos cinema e teatro. Reunindo personagens, acontecimentos e relações pessoais, recriando-as diante suas próprias reflexões sobre a sociedade elisabetana e as seguintes, apresentando ideias revolucionárias e ainda inventando estruturas de escritas, contou a história do jovem que, certo dia, acorda mulher e vive por quatro séculos. E o fez por uma forma de escrita livre que levou a novela a ser um marco mundial da literatura e um dos escritos mais potentes sobre gênero e o feminino.
É diante isso que Julies Beauvais se debruça para experimentar a ópera por meio de seu espetáculo-instalação homônimo. Entender sua proposição, portanto, exige ao espectador conquistar distanciamento suficiente para acessar suas sugestões. Algo nada simples, diante a sedução do espaço, da imagens e sons nessa experiência profundamente lírica e individual.
Sete grandes telas circundam o espaço, onde o público poderá se acomodar ao lado do músico convidado, enquanto vídeos são projetados e a música é desenvolvida. O que poderia ser somente espaço cenográfico tendo o espectador em seu interior é desconstruído ao sermos avisados pela diretora estarmos livres para circular dentro e fora da estrutura. É possível assistir aos vídeos de ambos os lados, e isso modifica tudo. Primeiro por afirmar o contexto instalativo da cenografia, entendendo por premissa a presença do espectador para sua qualificação. Significa, então, tratar-se mais de uma ambiência e não apenas de um lugar cênico. Segundo, pois o público, uma vez solto, introduz-se à obra como bem quiser, provocando sua própria imagem pela sombra projetada, pela casualidade de seu deslocamento, pelos sons quais produz e se somam à música determinando outra amplitude à espacialidade. Se não estamos apenas na instalação, onde estamos? Qual espaço ocupamos? Em parte, no teatro que se confirma, e também no cotidiano reativado pelos ruídos ao redor. A versão assistida em Buenos Aires, em praça pública, trazia ainda mais o dinamismo entre o interno e externo, como se ocupássemos ambos os espaços ao mesmo instante: por sua sugestão poética e por sua insistência na presentificação da realidade.
Um paralelo dessa relação está, de certo modo, na obra de Woolf, em que espaços naturais transitam aos mentais durante toda a novela, estabelecendo relação mais dialética entre quem se é e quem se pode ou espera ser. Se durante os séculos em que ocorre a narrativa, o mundo passa ininterruptamente por transformações; Orlando, a personagem, mantém o mais seguro possível seus valores, mesmo após ser outra. Não exatamente por sua capacidade em proteger seus espaços mentais e valores, e sim pela potência daquilo que descobre próprio ao existir ao tempo. Um tempo evidentemente proustiano, autor tão caro à escritora. Por conseguinte, o espaço qual trabalha a escritora é dado sobretudo pela disposição do tempo enquanto percepção de acontecimento, que o desenha e se desvela após os séculos. O espaço passível de ser compreendido somente diante sua contemplação temporal. Curiosamente, apenas décadas depois a física irá se dedicar à relação entre tempo e espaço dessa maneira.
A instalação dialoga com a eficácia da experiência espaço-temporal estar nas imagens reais (em vídeo) e mentais (pela sugestão musical), como quem afirma outro instante do presente, quando não mais as palavras são definidoras daquilo que narra, mas a indicação apreendida pelo imagético. O que justifica Orlando ser definido pela diretora como estudo em ópera. Um espetáculo sem texto, fala, canto, sopranos e barítonos, coros ou libretos. Uma ópera sem o norte da palavra explícita e, ainda sim, descritiva de si mesma a partir das imagens pelas quais discursos e personagens são aludidos a todo instante. É certamente esse o aspecto mais interessante da proposição: a inversão lógica do que comumente se compreende por ópera. Se na tradição a composição é estável deixando espaço para a criação ao como representá-la, Julies Beauvais faz da encenação material fixo, enquanto abre à música a possibilidade de ser sempre outra. A ópera, surgida no formato qual estamos acostumados, foi elaborada por séculos diante as lógicas de cada época. Não se trata, especificamente, de uma música com história, mas de uma narrativa a qual se estabelece pela composição uma dinâmica sonora e poética. Orlando não recusa a isso, apenas subverte a estrutura olhando a linguagem no que lhe pode ser o século xxi. É um risco, dado nem sempre ser fácil nos desprenderemos dos valores adquiridos, desenvolvidos e conquistado. Assim como compreendera a personagem de Woolf, o espectador precisará se adaptar ao instante e superar expectativas. Que se use a arte para provocar essa questão, de forma concreta e por sua experienciação, é uma ousadia instigante e especial.
É preciso aceitar a condição do espetáculo para permitir ao tempo convivência suficiente e, então, descobrir não estarem as imagens ralentadas, e sim os performers atuarem com gestos delicadamente lentos e mínimos, enquanto as únicas referências ao real se fazem pelo vento, pássaros, nuvens. Os personagens trocam de telas. Circulam pelos espectadores como se também a eles fosse permitido se moverem, e revelam um reinício insistente que convida a outra possibilidade de convívio: o espectador é menos um observador e mais a afirmação de suas presenças. Por estarem filmados em ângulo abaixo do eixo são figuras gigantescas, ainda que humanas. São muitas as sensações: lamento, abandono, solidão, devoção, procura, entrega, destino, espera, culpa, medo... Os olhos fechados não olham os céus, são seus corpos e gestos os responsáveis por isso. Os corpos retos não desistem do instante, mas os ambientes diversos os isolam de contextos literais, atribuindo o tom lírico fundamental ao entendimento de suas transformações, sejam quais forem.
Mulheres, homens, velhos, novos, brancos, negros, as imagens trazem um panteão humano que pode ser qualquer um ou, ainda, todos em um mesmo, tal qual o personagem no livro. A transformação do homem em mulher na ópera é mais do que apenas uma transposição de gênero, faz-se pelo processo dinâmico de descobrimento ininterrupto daquele que se é ou se descobre ser. É quando, por fim, o espectador se depara com algo maior do que o próprio objeto qual assiste. O outro como dimensão igual, pelo qual o humano se revela divino ou histórico, o que cada um escolherá responder em silêncio. Trata-se de uma obra de reconhecimento da empatia pela construção mítica do humano, diante uma existência eternizada ainda que etérea. E Orlando, na montagem operística de Julies Beauvais, faz com que o espectador só precise mesmo estar disponível ao encontro com sua humanidade e nada mais.
Os detalhes, esses descritos e tantos mais possíveis, surgirão de uma maneira ou outra. Mas é mesmo o belo, a presença das idades, dos tempos, dos corpos, das singularidades de cada performer, na maneira como delicadamente se revelam quando filmados, no jogo de cores nas roupas que remetem ao livro, que faz o espetáculo ser exatamente isso: espetacular. Um obra inesperada sobre o quão poético pode ser o mínimo momento em que fechamos os olhos e nos descobrimos misteriosamente vivos e grandes ao termos o vento sobre nós, e o quanto somos a transformação ininterrupta de uma existência comum e singular diante um mundo pleno de mistérios. Um espetáculo capaz de acompanhar o espectador por muito tempo.
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Fotos: Patrícia Cividanes e Festivales GCBA.
Ruy Filho e Patrícia Cividanes acompanham o festival com apoio do FIBA.